quarta-feira, 11 de maio de 2016

Pedregulho, 30 segundos



Pedregulho, 30 segundos.
Por: Igor Dresjan





-       Oi, me perdoe o inconveniente, mas posso incomodar você por um momento?
-       Claro, eu estava aqui só te esperando.
-       Me esperando? Como já sabia que eu iria vir aqui?
-       A gente só sabe.
-       Tudo bem então. É que a gente só ouve boatos, nada confirmado sabe?
-       Sei bem como é.
-       Então, qual é o seu nome?
-       Renato, e o seu?
-       Pedregulho.
-       Pedregulho?
-       É, Pedregulho. Na verdade meu nome de batismo eu não lembro mais... Já mudaram tanto o meu nome que eu nem sei mais quantos nomes me deram, mas lembro do meu ultimo: Pedregulho.
-       Vou me esforçar pra entender.
-       O que acontece agora? Para onde vou?
-        Eu vou te orientar, mas só depois de você dizer como isso foi acontecer com você.
-       Ah, Renato, é uma longa historia, vai querer ouvir mesmo?
-       Claro Pedregulho, temos muito tempo. Muito tempo mesmo.
-       Nossa, muito tempo mesmo?
-       Te garanto que sim.
-       Então ta... Acho que a historia começou quando eu tinha 11 anos.
-       11 anos? Realmente, é bem longa.
-       Sim, vai querer ouvir tudo mesmo?
-       Claro! Eu estava só brincando, conta aí!
-       Então vamos lá. Quando eu tinha 11 anos, eu era até um menino alegre e educado graças aos meus pais, devo a eles toda a educação que tenho hoje. E naquela época eu já dava esse valor a eles.
-       Isso e bem raro, principalmente naquela idade. 11 aos não se pensa nisso.
-       Acho que isso varia de pessoa pra pessoa, mas já que eu morava no meio da favela, eu tinha que ser mais atento a tudo né, mas não foi o que aconteceu.
-       Como assim?
-       Eu era atento a muitas coisas, mas ao mesmo tempo eu era um garoto totalmente submisso a outras pessoas. E não demorou muito para as pessoas de índole ruim me encontrarem, mas foi meio inevitável.  Aos meus 11 anos, meu pai foi despedido do trabalho e minha mãe engravidou do meu irmão.
-       Tudo de uma vez só?
-       Sim, tudo aconteceu em menos de um mês, a crise no pais estava bem complicada. Meus pais sempre me tranquilizando e falando que iam resolver tudo, que tudo daria certo, mas sempre eu via minha mãe com a barriga cada vez maior e chorando cada vez mais. Mesmo ela me dizendo que eram os hormônios da gestação, eu sabia que era pela nossa situação financeira, e sabia também que se nós não déssemos o dinheiro necessário pro Tutu, que era o chefe lá daquela favela, ele nos puniria. E acredite que quando ele decide punir, não seria leve a punição.
-       E o que ele fez com vocês?
-       Nada, porque assim que eu percebi que isso poderia acontecer, eu fui logo procurar um emprego. E engraçado que eu sempre quis trabalhar, pra ganhar um dinheirinho e ajudar em casa, mas nesse momento era quase obrigatório que eu trabalhasse.
-       E você conseguiu algum emprego?
-       De certa forma sim. No final de uma semana inteira procurando emprego e não conseguindo, um cara estranho veio me procurar pra fazer um serviço pra ele, e me ofereceu um bom dinheiro para isso. Sem pensar duas vezes eu aceitei. O dinheiro daria para cobrir todas as despesas de casa.
-       E qual tipo de serviço era esse?
-       Entregas. Eu fiz uma única entrega e levei o dinheiro pra ajudar lá em casa. Vendo a oportunidade de continuar a sustentar meus pais e meu futuro irmão, voltei a procurar o Muralha, que por sinal nunca se identificava "por motivos de segurança dele". Ele me falou que se eu cumprisse sempre os horários das entregas e mantivesse o sigilo sempre, eu ganharia sempre essa grana boa. E é claro que aceitei. Aquele final de semana foi um dos melhores da minha vida: sem preocupações, sem contas pra pagar, sem tristeza... Só alegria lá em casa.
-       Nossa, que historia feliz Pedregulho! Mas isso não explicou o porque de você estar aqui.
-       Calma Renato, nem ta na metade da historia, que de feliz não tem nada. Logo na semana seguinte, eu tive uma entrega por dia, e cada entrega era uma grana boa, que dava pra sustentar o mês inteiro com uma única entrega, mas eu não podia escolher o dia das entregas, tive que entregar uma vez por dia. Horário especifico, caminho especifico. Cada embalagem tinha uma cor e cada cor era um caminho especifico.
-       Embalagem de que?
-       Eu não sabia, eram caixas que cabiam em uma mochila preta que eu recebi do Muralha para as entregas. Eu não perguntava o que eram porque eu sempre entregava as caixas para mulheres e crianças. Eu amava aquilo, porque quando essas pessoas recebiam as encomendas sempre abriam um sorriso enorme e me agradeciam muito. Eu, inocente, achei que eram presentes anônimos carinhosos para espalhar a alegria na favela. E o que me deu mais certeza disso era o clima de alegria e paz que ficou na favela depois que eu comecei a trabalhar para esse Muralha. Eu percebia que até os policiais, que faziam uma confusão com a galera do Tutu, pararam de atirar no povo e fazer barulho de madrugada. O clima da favela ficou tão calmo e feliz! Eu fiquei até os meus 14 anos fazendo entregas e tornando a favela um lugar de paz e alegria! Chegamos a fazer uns projetos de infraestrutura para a favela, todo mundo me conhecia lá, consegui uma casa melhor para minha família e eu. E isso tudo foi reflexo das minhas entregas.
-       Ta, e onde esta a parte triste? Eu estou amando essa historia!
-       A parte ruim vem agora. Depois de 3 anos fazendo minhas entregas, a polícia foi passar o pente fino lá na favela. Eles alegavam que estava tranquilo até demais. E quando eles estavam passando perto de mim, bem no momento em que eu estava entregando uma caixa que era um pouco maior que o normal, os policiais me pararam, me revistaram e abriram a caixa.
-       E o que ouve? Não para de contar! O que tinha dentro da caixa?
-       Cocaína, Renato, muita cocaína dentro daquela caixa. Daquela não, Daquelas caixas! Eu traficava uma caixa de pelo menos 3 quilos TODOS OS DIAS EM 3 ANOS! Quando eu vi o que tinha naquela caixa, que daquela vez tinha quase 7 quilos, nem resisti ao ser preso e levado por eles.
-       Mas e a sua família?
-       Eles iriam ficar sabendo de qualquer jeito, notícia ruim chega rápido.
-       Não, quem iria sustenta-los?
-       E eu estava pensando nisso naquela hora? Eu só sentia vergonha por ter sido traficante de drogas, uma função que eu julgava tanto, minha mãe falava tanto para eu me afastar disso. Eu enojava traficantes, e naqueles 3 anos eu era um, e pior, um dos melhores. Por isso conhecia todo mundo, por isso ganhava aquela grana boa por entrega, por isso que os policias estavam irados por não terem achado, até naquele momento, nenhuma droga sequer. E quando me acharam, virei o alivio deles.
-       Nossa pedregulho, e te levaram pra onde?
-       Para onde levam os infratores menores de idade. Pra FEBEM. Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor. Resumindo, é uma prisão para menores de idade, que de bem-estar não tem nada. Uns dizem que é até pior que penitenciárias por aí.
-       Mas você nem foi julgado, ou passou pela ECA antes?
-       ECA?
-       É, ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente. Serve para tirar menores de idade da criminalidade e preservar os direitos da infância.
-       Que nada, você acha que a polícia queria o meu bem? Eles queriam me destruir o quanto podiam. Por isso nem passei por esse ECA aí. Fui direto pra FEBEM. E Renato, você não tem noção do que e estar lá dentro da FEBEM. Eu posso te dizer sim, que é pior que muitos presídios por ai. Eu sofri muito, muita agressão física, moral, psicológica... Ameaças diárias, medo de morrer lá dentro. Todo dia morria pelo menos um de fome, de porrada, ou de doença. Eu achava que não sairia de da lá vivo. Fiquei 2 anos preso, apanhando muito e assistindo muita gente morrer. Mas sempre na minha, sempre ficando longe de confusão. Sempre agradecendo meus pais pela  educação e a orientação que eles me deram pra vida. Depois desses 2 anos de FEBEM, aos meus 16 anos, a psiquiatra de lá percebeu que eu não deveria estar ali, que eu era muito diferente dos adolescentes da fundação, e que se eu ficasse mais um tempo ali eu iria ser corrompido. Doutora Morgana o nome dela. Devo muito da minha vida a ela também. Depois que ela me retirou da FEBEM, eu fazia consultas semanais de graça com ela, para ela me avaliar regularmente. Ela achou minha família, que estavam morando na rua, me arrumou um emprego para sustentar minha família, me ajudou a encontrar uma casa simples e longe daquela favela. Enfim, a doutora Morgana deu uma nova vida pra mim e para minha família.
-       Ufa, achei que a historia iria ter um final muito triste. Ainda bem que...
-       Renato, para de me interromper, não acabei!
-       Caramba Pedregulho, você já passou poucas e boas, agora vai dizer que passou coisa pior?
-       Só escuta. Fiquei 4 anos nessa vida. Sem segredos, sem tráfico, sem drogas, sem confusão e vivendo bem com minha família. Curti demais meu irmão caçula. Ah, Jhon o nome dele. Ele era lindinho demais quando criança, e estava ainda mais lindo com 9 anos, e, diferente de mim, ele aproveitava a infância brincando muito com os colegas que ele tinha perto de nossa nova casa.
-       Que reviravolta boa!
-       Sim, mas mais uma vez fiz uma coisa boba na minha vida. Esses 4 anos de consultas com a doutora Morgana me convenceram a fazer algo para redimir meu trabalho sujo lá na favela. Meu erro foi concordar com isso. Na hora eu achei uma ideia perfeita. Eu acabaria com o tráfico de drogas na favela na qual eu nasci e cabei destruindo. Tomei coragem e fui na polícia para sugerir um projeto de pacificação para aquela favela. No inicio os policiais riram e nem deram bola, mas quando eu falei quem eu era antes da minha nova vida, eles logo chamaram o comandante para uma reunião. Em uma semana já estávamos começando a projetar o plano de pacificação. Eu ia fornecendo todas as informações que eles pediam: rotas, becos, todos os buracos e focos da boca de fumo, pontos de venda... TUDO que eu sabia enquanto eu espalhava aquele veneno pela favela. Estava tudo dando muito certo, mas no meio da formulação do projeto e confecção do mapa da favela, eu recebi uma ligação anônima. Diziam que estavam com alguns reféns importantes pra mim, e que se eu não atrapalhasse aquele projeto com a polícia, matariam lentamente um por vez, começando pela doutora Morgana e terminando pelo Jhon, para ele ver tudo.
-       Isso é terrorismo!
-       E eu não sei disso?! Eu entrei em desespero! Eu não poderia falar nada com ninguém, e nem a doutora Morgana, que era meu porto seguro, estava disponível pra mim. Então eu tive que fazer o que queriam.
-       Você não fez isso!
-       Mas é claro que fiz! Você não achava que eu daria preferência ao projeto do que a minha família né?
-       Eu não acho nada, só sei que é uma decisão difícil a ser tomada, principalmente por se arriscar tanto atrapalhando o projeto, ali, na frente de policiais e até do comandante.
-       Exatamente, mas não foi nem tão difícil atrapalhar. Eu só mudei o lado do projeto, ao invés de irem por um lado da favela, mandei eles irem para o lado oposto, alegando ser mais difícil dos traficantes fugirem, sendo que na realidade era o oposto do que eu falei pra eles. A partir daí fiquei uma semana inteira no desespero, não sabendo se depois que o plano falhar eu iria receber minha família e minha protetora de volta inteiros ou se eles estavam sofrendo fisicamente pior que o que eu estava sofrendo psicologicamente. Não sabia se, mesmo o plano sendo corrompido, os policiais iriam matar muita gente inocente, ou até mesmo se desse certo e os traficantes matarem todas as pessoas que eu amava. Felizmente, ou infelizmente, não sei dizer até hoje, o plano falhou completamente, e é obvio que a polícia veio direto a mim para saber o que houve. Muitos policiais feridos e nenhuma droga apreendida. Eu falei que disse tudo o que e sabia, mas não colou com eles. Fui preso, mas agora em uma prisão de adulto, uma penitenciária cheio de assassinos e malucos por confusão.
-       Caramba Pedregulho! E a família? E a doutora?
-       Calma. Calma. Os traficantes soltaram todos sem um arranhão. Mas eu estava sem eles de qualquer jeito. Peguei 1 ano de prisão para "pensar nas minhas atitudes e não brincar mais de policial".
-       Sem ser julgado?
-       Você realmente acha que juiz tem voz com policiais quando o assunto é favela e traficantes? Que nada! Eles querem mais é que eu vá preso mesmo. Um a menos para perturbar solto na sociedade. Nesse ponto os policiais que viram juízes, e eu só não fiquei mais tempo porque no meu histórico criminal tinha um pedido da doutora para que eu saísse da FEBEM, e acabei sabendo que a doutora tinha voz com o comandante. Enfim, eu achei a prisão menos pesada do que a FEBEM, mesmo apanhando de vez em quando e sofrendo algumas ameaças, eu tinha a certeza de que minha família estava livre e a salvo, e sabia que a doutora estava cuidando deles pra mim.
-       Nossa, essa doutora foi quase um anjo da guarda pra vocês né?
-       Sim, devo minha vida a ela. Fiquei um pouco chateado durante esse 1 ano de prisão, porque ela não apareceu nem uma vez para vir falar comigo, mas imaginei que fosse medo depois do sequestro, ou até mesmo para preservar a imagem dela, porque na prisão tem muita gente ruim, e do jeito que ela é, ela poderia ter colocado alguém lá dentro, entende?
-       Perfeitamente.
-       Então, quem ia me visitar sempre era meu pai. Minha mãe e meu irmão só vieram umas duas vezes, mas entendo porque minha mãe não queria levar meu irmão lá pra prisão, era um lugar pesado demais para uma criança. Quando fui solto, tinha 21 anos. Vamos dizer que minha adolescência não foi muito bem vivida, mas esse 1 ano realmente me fez pensar sobre o que eu queria. Eu queria fazer o bem, aproveitar minha juventude e dar um bom exemplo para o Jhon, que agora estava começando a crescer, já estava com 10 anos, mas vivia uma outra realidade comparado a minha. Estudava em uma escola, não morava na favela.
-       Que oportunidade incrível que você deu a ele, Pedregulho!
-       Sim, acho que nesse sentido, ele foi o único a sair na vantagem com a vida dele.
-       Mas e seus pais? Continue a Historia.
-       Ok, onde parei?
-       Você saiu da prisão depois de 1 ano.
-       Ah, ta bom. Depois que fui solto, fui pra casa abraçar minha família, pôr os assuntos em dia. Soube que meus pais conseguiram um emprego cada um, graças a Morgana. Passamos o restante do dia nos curtindo e rindo muito das historias que o Jhon contava. Dia seguinte fui procurar Morgana, mas minha mãe falou que ela se despediu de todo mundo quando fui preso e nunca mais apareceu. Eu não quis acreditar nela, fui direto pro escritório dela, mas vi o que minha mãe tinha dito: Morgana se foi. Não estava no escritório, não atendia as ligações... Eu fiquei muito triste, mas até que entendia ela. Foi ajudar um adolescente na FEBEM, se envolveu com uma família e foi raptada. Até eu nas condições dela, sumiria, mas ela poderia despedir de mim não é? Eu devo minha vida a ela. Voltei pra casa meio triste, mas quando vi minha família percebi que ela tinha feito o que eu faria, ela deu 4 vidas novas pra gente e foi embora ajudar mais pessoas pelo mundo aonde ela fosse.
-       Com certeza, Pedregulho, ela esta bem feliz ajudando as pessoas por aí.
-       Tomara. Pelo menos ela se afastou da confusão que estaria por vir.
-       Mais confusão?
-       Sim. Duas semana depois de minha liberdade, recebi uma ligação dizendo que eles sabiam onde eu morava e se eu não voltasse a contrabandear eles viriam pra matar a gente. Fiquei desesperado. Desliguei na hora, e fiquei pensando que se eu trabalhasse de novo com contrabando, eu não iria me perdoar. Mas e se eu fosse preso novamente? Claro! Assim minha família ficaria segura e eu não trabalharia com contrabando. Por toda a semana seguinte ligaram varias vezes fazendo ameaças horríveis à minha família e a mim. Depois não aguentei mais, eu queria que isso parasse. Tentei acalmar meus pais e o Jhon, dizendo que eu resolveria isso, que eles não iriam mais ser ameaçados, mas eu nem sabia o que eu iria fazer. Fui para a favela falar cara a cara com o Tutu. Chegando lá, me ocorreu o pior: Tutu me recebeu com uma caixa na mão, me agradecendo de forma debochada e dizendo que se eu não entregasse mais minhas "tão queridas encomendas", eu iria morrer ali mesmo na frente dele. Eu não tive escolha, entreguei a caixa e nem peguei o dinheiro, fui direto pra casa.
-       E ficou por aí mesmo?
-       Não. Eu não deixaria por isso mesmo, até porque eles continuaram com as ameaças. Além de não poder fazer nada lá na favela em relação a isso, eu não poderia ir à polícia. Então eu tive que tomar uma das decisões mais difíceis que eu já tinha tomado: ser preso propositalmente para eles pararem de pôr terror na gente. Fui à favela, pedi mais uma encomenda. Fui recebido com muita porrada, mas me deram a embalagem colorida. Corri direto pro pé da favela entregar a caixa aos policiais. Fui preso na hora, só que dessa vez minha família sabia do acontecimento. Peguei 6 anos de penitenciária, 6 anos tranquilos e sem ameaças da galera do Tutu.
-       Sem ameaças do Tutu, mas e as ameaças de dentro da prisão?
-       Ameaças leves, poxa, não recebia ameaças de morte lá, não ameaçavam minha família. Eu fui pra lá com a consciência muito limpa. E mesmo sendo moído na prisão, eu estava relaxado pela minha família estar segura. Fui pombo correio, fui puta de macho, fui saco de pancada de policial. Mas sofria isso pela minha família, e felizmente eles davam valor a isso. Quando saí desses 6 anos de cadeia, estava com 27 anos, e no mesmo dia de minha soltura, recebi aquela mesma ligação com ameaças ainda piores com minha família. Quando desliguei eu já sabia o que fazer. Mesmo não esperando que a ligação seria no mesmo dia da soltura, eu já imaginava que receberia mais ameaças depois desses 6 anos. Avisei que em uma semana voltaria a trabalhar para eles de bom grado. Conversei com meus pais e com o Jhon. Foi um chororô só, mas tive que decidir se eu viveria com essas incertezas de matarem minha família ou não. Então eu estav...
-       Espera! O que você falou para os seus pais?
-       Ah, eu decidi que faria uma coisa bem tensa para ser preso por muito tempo. Tempo suficiente para a gangue do Tutu me esquecer. Meus pais quiseram argumentar comigo, mas era inútil, eu já tinha decidido isso no 4° ano da prisão. O único problema foi o modo que eu consegui isso. Fiz uma coisa que eu não me perdoo até hoje.
-       Pedregulho, não para de contar! Continua, isso é importante de eu saber.
-       Eu matei, Renato, eu matei um polícial. Armênio o nome dele. Ele tinha família, cuidava da mãe. Eu estraguei uma família inteira. Consegui o que eu queria, mas não muito bem do jeito que eu queria. Fiquei bastante tempo na prisão dessa vez.
-       Bastante quanto, Pedregulho?
-       Peguei perpétua, mas esse não foi o erro. Eu entrei em processo pela primeira vez, mas era para decidirem se eu iria receber pena de morte ou não.
-       PENA DE MORTE?
-       Sim, mas esse processo demorou 16 anos para ser aberto, ou seja, eu fiquei depressivo por quase 16 anos, primeiramente por ter destruído uma família inteira, e depois por não saber a qual momento eu iria morrer. Durante esse período, fiquei sabendo que meu irmão, que nesse momento já tinha 32 anos, se formou e sustentava sem problemas nossa família, tinha esposa e um filho prestes a nascer. A esposa dele não gostava muito de mim, mas quando eu soube que Jhon foi a única pessoa da família a se formar, conseguir um emprego excelente e sustentar quase duas famílias, saí da depressão e comecei a simplesmente esperar meu momento chegar. Sentia que minha missão com minha família havia acabado. Nos últimos 5 anos de minha prisão eles se mudaram pra longe e perdemos o contato, mas eu estava muito feliz por todos eles.
-       Ok, mas e depois desses 16 anos de cadeia esperando morrer ou não?
-       Então, Quando deram 17 anos de prisão, fui informado que o juiz tinha assinado a sentença e que os policiais estavam só esperando a assinatura chegar para me levarem para a cadeira de execução, ou seja, o tempo entre a chegada da assinatura, e minha morte era de 30 segundos. Eu já estava com a roupa de execução na sala ao lado, só esperando. Refletindo sobre minha vida. Triste. Desanimado. Desesperançoso.
-       Então foi isso que aconteceu, não é mesmo? Foi morto por eles, pelos policiais?
-       Sim e não.
-       Não entendi.
-       Calma. Não terminou.
-       Ah, sim. Continue então.
-       Eu estava esperando a contagem de 30 segundos começar, mas no momento em que a porta se abriu, não saiu um guarda de dentro da porta. Eu vi o Tio Bomba vindo me soltar. Tio Bomba era um outro preso mais tranquilo que era minha única companhia lá, ele era o único que acreditava no que aconteceu com a minha vida. Enfim, ele entrou e me disse que os prisioneiros entraram em rebelião. A prisão foi evacuada e só tinham os presos dentro fazendo algazarra e ateando fogo nas coisas, destruindo a prisão.
-       Você não foi apoiar essa rebelião não, né?
-       Não, não. Eu era contra a rebelião. Eu já tinha escutado boatos da rebelião e comentei que não era a favor. Quando souberam que eu era um dos pouquíssimos que eram contra, meteram tanta porrada em mim que cheguei a receber esse meu último nome: Pedregulho.
-       Nossa, você recebeu uma porrada das boas então...
-       Sim, a pior de minha vida. Me disseram que quando tentam destruir um muro forte, e ele se desfaz no chão, ele vira um pedregulho. Por isso meu último nome. Enfim, eu e o Tio Bomba saímos no meio da confusão procurando um lugar mais seguro para esperar os ânimos abaixarem e os reforços policiais chegarem. Nós encontramos um canto mais tranquilo perto do portão de entrada da cadeia, mas o Tio Bomba foi achar uns outros amigos. Depois de uns minutos, eu assistindo toda aquela confusão, gente tomando facada, gente gritando, brigando. Vi que eu não estava pensando direito ao achar que a prisão era melhor que a vida livre, mesmo evitando ameaças, lá fora se tem a liberdade de escolha para algumas coisas, mas lá na prisão não se tem nem liberdade sobre o próprio corpo.
-       E quando essa confusão acabou?
-       Foi depois de 6 horas de rebelião. Eu fiquei o tempo inteiro no canto perto do portão, porque estava mais afastado das mortes e confusões. Quando os policiais chegaram, eles não queriam nem saber se os rebeldes também eram humanos. Houve uma guerra entre policiais e rebeldes que durou cerca de uma hora. Quando a guerra acabou, os policiais estavam colocando todos os rebeldes de joelhos e fazendo uma contagem. Nesse momento parei de prestar atenção no movimento e vi que os reforços tinham deixado o portão aberto. Quando eu vi minha liberdade ali, aberta pra mim, me chamando para andar e ser livre, não tive que pensar muito, saí correndo para o portão que não estava longe de mim. Assim que pus meus pés pra fora da cadeia, eu senti uma dor terrível nas costas, minha visão ficou embaçada, como se um clarão do dia queimasse meus olhos, mas não quis saber, continuei correndo para minha liberdade. Quando cansei, te encontrei aqui, e tinha entendido todos os pontos que estavam mal explicados na minha vida. Até o sumiço de Morgana eu havia entendido, porque nessa corrida eu cheguei a vê-la correndo mais distante de mim, junto com Armênio. Meus 30 segundos haviam chegado no final.
-       Suponho que esse foi o final de sua historia?
-       Sim, terminou exatamente assim. Mas e agora, para onde devo ir?
-       Só continue correndo ali pra frente, em algum momento você vai ver duas escadas, uma que desce e outra que sobe. Pegue a escada que sobe, e entregue esse cartão à uma menina que cuida da entrada dessas escadas, diga que o Renato mandou você subir, ok?
-       Ok, Renato, obrigado pelo seu tempo e paciência, eu realmente estava precisando desabafar isso com alguém.
-       O prazer é todo meu, Muralha.

FIM